As limitações das ciências médicas

Atualizado pela última vez em 04/01/2024

As ciências naturais procuram explicar o mundo e desenvolver tecnologias que nos permitam modificar a natureza para que ela se torne mais dócil às necessidades humanas. Na busca pelo desenvolvimento de um saber objetivo e sem vieses, pesquisadores procuram “limpar” o processo de criação científica das interferências pessoais. Contudo, ao invés de fazer uma ciência objetiva, muitas vezes se produz apenas um conhecimento subjetivamente alienado.

Poucos ainda acreditam no mito de que a ciência é imparcial e objetiva, entretanto a dimensão subjetiva da ciência e seus impactos nas vidas das pessoas não são adequadamente apreciados pelos pesquisadores e produtores de conhecimento científico. Por conseguinte, ao se tentar excluir a subjetividade na pesquisa, corre-se o risco de produzir um conhecimento que se aliena da percepção de si mesmo como produção eminentemente humana (desse modo, subjetiva) e da discussão dos impactos que tal conhecimento traz ao modos vivendi das pessoas que o aplicarão e se servirão dele.

Desde a segunda metade do século XX, a partir dos trabalhos da sociologia da ciência edificados a partir da obra de Thomas Kuhn, é possível reconhecer que nem só de objetividade se faz pesquisa. Em “A Estrutura das Revoluções Científicas” Kuhn descreve como se desenvolve um paradigma científico e como as linhas de pesquisa se sucedem ao longo do tempo.

Idealmente, em uma situação na qual duas teorias científicas explicam de modo diferente um mesmo fenômeno, o critério a ser adotado para decisão entre uma delas seria, supostamente, o critério racional. Ou seja, ganharia a teoria que explicasse mais amplamente os diversos aspectos do fenômeno em questão e que tivesse menos inconsistências internas. Além disso, se essa teoria fosse a mais elegante, clara e direta, seria também a preferida. Pela navalha de Ockham, não se deve multiplicar entidades mais que as necessárias para explicar um fenômeno e a melhor resposta é a mais simples.

Todavia, Kuhn argumentou que existem fatores intrinsecamente humanos na decisão entre duas teorias competidoras. Uma teoria poderia ter uma vantagem dependendo do poder político e prestígio social de quem a defendesse. Outras vezes, o simples fato de os defensores envelhecerem e publicarem menos poderia ser suficiente para que uma determinada hipótese caísse em desuso.

É possível apreciar esses fatores imponderáveis em atividade na sucessão de linhas de pesquisas das ciências naturais e biológicas quase tanto quanto nas ciências humanas que abraçam mais abertamente sua subjetividade.

Interessantemente, a via que liga o objetivo ao subjetivo na ciência tem mão dupla. Do mesmo modo que a objetividade dos conhecimentos científicos é tocada pela subjetividade dos pesquisadores, a visão subjetiva de mundo dos que se apropriam no dia-a-dia dos frutos da ciência é modulada pela objetividade dos saberes produzidos por ela.

Algumas descobertas científicas são capazes de, isoladamente, modificar toda a cosmovisão de uma época. Um exemplo clássico foi a descoberta das luas de Júpiter por Galileu, refutando com um simples telescópio toda a teoria geocêntrica. Claro que o impacto maior não foi sobre os mapas astrológicos, mas sobre a idéia católica de que Deus construíra o mundo com a Terra e o ser humano em seu centro. Subitamente, deixaríamos de ser a obra-prima e central da Criação e isso as autoridades eclesiásticas não puderam permitir naquele tempo.

Do mesmo modo, a descoberta de fósseis de dinossauros datados por carbono 14 com milhões de anos põe em terra a teoria bíblica que o mundo foi criado em sete dias há cerca de 40 mil anos. Por mais que fanáticos criacionistas tentem forçar sua fé sobre o tema, as evidências científicas são irrefutáveis na dureza de seus dados. Mas nem tudo se resume a certo ou errado. Muitas vezes há várias verdades.

O mundo contemporâneo é vasto e plural. Coexistem inúmeras visões de mundo e filosofias sem a necessidade de decisão definitiva entre elas. A relatividade do conhecimento é melhor apreciada e os dogmatismos são vistos com um certo grau de tolerância, desde que não redundem em violência e desrespeito aos direitos dos outros. Por esses fatores, é pouco provável que vejamos grandes revoluções por descobertas científicas isoladas. Ainda assim, pequenas modificações substanciais podem ser promovidas pelas práticas científicas continuamente implementadas e revistas nos tempos atuais.

Muitos usuários do conhecimento científico, como os médicos, são cegos para essa questão. Exercem seu poder de mudar as visões de mundo por meio da aplicação do conhecimento sem se darem muita conta disso. Assim, tornam-se agentes de mudança alienados do seu próprio papel. Como a medicina baseada em evidências trata a ciência de modo extremamente objetivo, duplo-cego e placebo-controlado, as discussões filosóficas são muitas vezes negligenciadas, ficando ao largo das tomadas de decisão. Quando muito, procura-se aquilatar os impactos sociais e econômicos de políticas públicas de saúde ou pensar os aspectos éticos das práticas científicas. Mas falta pensar que no uso cotidiano da ciência, a medicina é personalizada e provoca transformações na vida pessoal dos pacientes.

Como se define “morte natural” hoje em dia? Até que ponto se deve compreender as doenças como antinaturais? Certamente não se deve abreviar a vida, nem prolongar o sofrimento da morte. O conceito de ortotanásia lida exatamente com isso. Mas não existe mais uma morte natural, pois se o paciente estiver bem e tiver um infarto, será tratado agressivamente não importa sua idade ou se ele, pessoalmente, entende que já cumpriu sua missão nessa vida.

Alguns mais atentos não se furtam à discussão. Diante da possibilidade de detectarmos quem terá doença de Alzheimer até uma década antes dos primeiros sintomas, há médicos lúcidos a ponto de questionar como devemos classificar esse paciente e como tratar essas informações. Poderá ser identificado como um portador da doença de Alzheimer na fase pré-clínica ou como sujeito em risco?

Mais ainda, com o desenvolvimento de novas drogas que nos permitem manipular mais facilmente os humores e disposições mentais, o leque da normalidade está se estreitando pois tudo é passível de controle com o medicamento adequado. Uma tendência oposta à relativização dos valores e aceitação da pluralidade típicas do mundo globalizado.

Não podemos esquecer que grandes obras da literatura e de todas as artes foram possíveis porque seus autores eram deprimidos, esquizofrênicos, enxaquecosos, epilépticos, hiperativos, paralíticos. Lembro que Hermeto Paschoal dizia que era músico graças ao fato de ser albino. Por esse motivo não podia ir trabalhar na lavoura com o pai e os irmãos e ficava em casa, tocando os instrumentos que criava com as próprias mãos.

A medicina do futuro quer ultrapassar a medicina das evidências estatísticas e se tornar a medicina personalizada. Pelo desenvolvimento da farmacogenômica deveremos ser capazes de saber de antemão qual o melhor medicamento para um determinado paciente examinando seu DNA e qual efeito exato se esperar dele. Nesse momento, os médicos precisarão ser mais filósofos e estarem aptos da discutir com seus pacientes não apenas o que podem fazer por eles, mas se eles quererão mesmo isso.

Roger Taussig Soares
Neurologista SP
crm 69239

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roger.soares
Dr. Roger Soares é médico neurologista, nascido em 1968 no Paraná. Mora em São Paulo há mais de 30 anos e é médico credenciado dos maiores hospitais da capital paulista. Atualmente se dedica exclusivamente ao tratamento de seus pacientes particulares no consultório no Tatuapé. Gosta de escrever, aprender e provocar reflexões. "Conhecimento verdadeiro é saber a extensão da própria ignorância." Confúcio

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