Vivendo a morte integralmente

Atualizado pela última vez em 04/01/2024

A Dr. Marcus F. B. Soares (in memoriam)

A morte é o momento mais grave da existência. Está presente no nosso cotidiano, serve-nos até de conselheira, mas continua sendo radical quando se aproxima de nós. Nada é mais impactante que o vazio que se segue ao instante em que se fecham, pela última vez, os olhos de quem amamos. Muitos tentam nos consolar. Algumas doutrinas tentam diminuir o poder da morte por meio da promessa da vida eterna ou da reencarnação, mas ela não deixa dúvidas que mesmo que a vida siga em outro plano, esse deve terminar. Diante da ceifadora alguma coisa muda na qualidade do ser de quem fica. Falar da morte sem ter passado diretamente por essa experiência e como ensinar a navegar sem ter visto o mar.

A vida separa as pessoas em dois grupos: os que tiveram a experiência da perda de um ente querido e aqueles que só ouviram falar, até agora. Sim, porque só quem já passou por isso pode olhar nos olhos do outro e dizer “entendo o que está sentindo”.

Parece dramático, mas talvez deva ser assim. Diante de algo tão único como o desencarne, o pior que podemos fazer é manter uma distância emocional artificial e perder a oportunidade de viver intensamente a situação. O luto não vivenciado é consumidor e se prolonga infinitamente. Os ritos funerais são momentos solenes em qualquer cultura. Dá para entender até as carpideiras, elas insuflam o ambiente de dor para que ninguém fuja do real e evite o luto que é o sentimento próprio e necessário nessa hora.

Antigamente os velórios duravam 3 a 7 dias, eram feitos na casa do defunto com a presença do mesmo. Duravam esse tempo para que as pessoas tomassem conhecimento e conversassem sobre o morto, de modo a concluir um balanço generoso da vida de quem partiu. Nos dias de hoje, com as situações de morte prolongadas por dias ou semanas na UTI, a vivência da perda e o luto começam antes. Algumas vezes, quando chega o desenlace final tudo já foi dito, as lágrimas derramadas e o que resta é devolver o pó ao pó, sem rodeios.

Os rituais fúnebres são momentos especiais. Se prestarmos atenção, teremos a oportunidade de enxergar quem se foi pelos olhos das outras pessoas. Em cada relacionamento que temos expomos uma parte de nós, de modo que aprender dos que conviveram com as outras facetas daquele que nos deixa é montar um quebra-cabeças e talvez se surpreender pela figura que se forma. As conversas com familiares, amigos e comensais, compartilhando memórias, “causos” e casos, frequentemente revelam que havia muito mais por conhecer sobre aquela pessoa. Por maior que seja a convivência, a personalidade é a instância privativa do ser e, portanto, indevassável e inacessível em sua totalidade.

No confronto com a morte os caminhos se alteram, temos a sensação de uma interrupção e de que o que era para ser, não mais será. No embate entre o real e o condicional(ficamos sempre pensando “mas se…”) vemos o poder gigantesco da morte. Desafiando a lógica do tempo, a morte se instala e muda não só o presente e o futuro, mas também o passado. Ao perder um ente querido, lembramos dos momentos que passamos juntos, recompomos o que conhecíamos dele pelo relato dos outros e enfim reconstruímos nossa própria memória. A relevância de cada ato passado é redimensionada e nossa própria história reescrita. Aquele personagem que fez parte da nossa vida ganha novos contornos e não somos mais os mesmos.

Foi assim que vivi a morte do meu pai. Passei por essas situações, conversei com pessoas. Soube de coisas que nem imaginava que estavam nos pensamentos dele e fui feliz em saber que tinha sido um bom filho, assim como meus irmãos. Lembrei de quando o acompanhei no enterro de sua querida esposa, afastada de sua convivência precocemente. Ao descer o caixão ele se virou e me disse: o que eu tinha que fazer eu fiz, não tenho mais nada aqui. Seguindo sua lição, não me furtei ao sofrimento nem me esquivei da dor, vivenciei tanto quanto pude todos aqueles dias e honrei sua memória fazendo o mesmo que ele: ao final de tudo, virei-me e fui embora.

Roger Taussig Soares
Neurologista SP
crm 69239

Compartilhe nas suas redes:
roger.soares
Dr. Roger Soares é médico neurologista, nascido em 1968 no Paraná. Mora em São Paulo há mais de 30 anos e é médico credenciado dos maiores hospitais da capital paulista. Atualmente se dedica exclusivamente ao tratamento de seus pacientes particulares no consultório no Tatuapé. Gosta de escrever, aprender e provocar reflexões. "Conhecimento verdadeiro é saber a extensão da própria ignorância." Confúcio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

You cannot copy content of this page

Pular para o conteúdo